Endless Summer!
Vivendo o verão sem fim

Abr
26

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

(Pablo Neruda)

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Eis aqui o original em espanhol.

Este poema é para *ela*, que está tão longe e tão perto.

Mar
30

“Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu silêncio! tinha textura a minha raiva!) que eu, a cada passo, me distanciava lá da fazenda, e se por acaso distraído eu perguntasse ‘para onde estamos indo?’ — não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, desprovido de qualquer dúvida: ‘estamos sempre indo para casa’.”

[Lavoura Arcaica, cap. 6]

Dez
05

Há pouco espaço em nossas vidas para o silêncio. Em meio à agitação e ao ruído que emerge do atrito entre minha vida, a sua e a deles, não é de se espantar que nos ceguemos para o óbvio, e que nossas pequenas verdades (tão valiosas, ainda assim) se escondam sob mil disfarces. Porque há certas coisas sobre o mundo, sobre nós mesmos, que só podemos encontrar no silêncio que a solidão nos propicia.

Usamos diversas faces no cotidiano, e cada uma delas oferece um vislumbre de um todo que nem mesmo nós próprios chegamos perto de perceber, veja lá entender.  Porém, se estou sozinho, não preciso sorrir pra mim mesmo, se não quiser; não preciso me oferecer palavras gentis; posso até me enganar por algum tempo, mas não muito. Nesse momento, vem a inquietude, as incertezas, a dúvida atroz que fere e paralisa. Mas, ao mesmo tempo, vem uma paz indefinível por gestos ou palavras – e as pequenas verdades aparecem. Como uma vela no escuro que, ao mesmo tempo que ilumina, traz uma consciência ainda maior do escuro que nos cerca. E assim sigo minha vida, guiado por qualquer luz que encontre.

E mais uma vez percebo que nenhuma felicidade é real se não puder ser compartilhada; nenhuma sabedoria tem valor se não puder servir a outros; nenhuma vida se realiza sem amor, seja lá que formas ou traços esse amor possua. Eu sou a equação – algumas vezes harmônica, em outras dissonante – de todas as pessoas que encontrei e que amo, do infortúnio e do contentamento que experiencei com elas, de todos os pequenos instantes em que, apesar de todos os ruídos e disfarces, pudemos, juntos, trazer alguma luz para o escuro do céu.

Mas, o que fazer? Paradoxalmente, às vezes precisamos nos perder para podermos nos encontrar. E aqui estou, longe das pessoas que amo, dos lugares que me acolhem, tentando forjar uma existência nova e talvez, no caminho, encontrar outros lugares para me acolher, outras pessoas para amar – na esperança de descobrir um senso de propósito, de pertencer a algo maior que eu mesmo.

Enquanto isso, continuo seguindo perdido na tradução.

Afinal de contas, às vezes a viagem é o próprio destino, não é?

Junto a minhas palavras desajeitadas, ponho outras mais graciosas de autoria de outrem, palavras que trago comigo há tempos.

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Siga tranqüilamente entre a inquietude e a pressa,
lembrando-se sempre de que há paz no silêncio.
Tanto quanto possível, sem se render,
mantenha-se em harmonia com todos que o cercam.
Fale a sua verdade, clara e mansamente;
Escute os outros, mesmo os tolos e os insensatos;
eles também têm a sua própria história.

Evite as pessoas ruidosas e agressivas: elas afligem o nosso espírito.
Não se compare aos demais, olhando as pessoas como superiores ou inferiores a você:
isso o tornaria vaidoso e amargo.
Viva intensamente seus ideais e o que você já conseguiu realizar.

Mantenha o interesse em seu trabalho; por mais humilde que seja,
ele é um verdadeiro tesouro na continua mudança dos tempos.
Seja prudente em tudo o que fizer,
porque o mundo está cheio de dissimulação.
Mas não deixe que isto o torne cego para a virtude que existe.
Em toda parte, a vida está cheia de heroísmo.

Seja você mesmo.
Sobretudo, não finja afeição,
nem seja descrente do amor,
pois, no meio de tanta aridez e desencanto,
ele é perene como a relva.

Aceite serenamente o conselho dos anos,
abdicando graciosamente das coisas da juventude.
Cultive a força de espírito e você estará preparado
para enfrentar as surpresas da sorte adversa.
Não se desespere com perigos imaginários:
muitos temores nascem do cansaço e da solidão.
Ao lado de uma disciplina sadia,
seja gentil consigo próprio.

Você é filho do universo,
Tanto quanto as estrelas e as árvores;
você merece estar aqui.
E, ainda que não lhe seja claro,
a terra e o universo vão cumprindo o seu destino.

Procure, pois, estar em paz com Deus,
seja qual for a forma que você o der.
E seja quais forem seus trabalhos e suas aspirações
na fatigante jornada da vida,
fique em paz com seu espírito.

Acima de toda mesquinhez, falsidade e sonhos desfeitos,
o mundo ainda é belo.

Alegre-se.
Faça de tudo para ser feliz.

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Esse texto, Desiderata (latim, plural de  desiderium, “aquilo que se deseja”, “aspirações”) foi por muito tempo considerado de autoria desconhecida, tendo sido supostamente encontrado na Igreja de Saint Paul, em Baltimore, EUA, no ano de 1692. Na verdade, ele foi escrito por Max Ehrmann, filósofo, poeta e advogado norte-americano, em 1927. A história mentirosa é muito mais legal, mas há de se dar os créditos ao moço, que ele merece.

Out
31

amores perros

Quem me conhece sabe que, no horóscopo binário que divide o mundo entre gatos e cachorros, eu sou cat people. Gosto mais dos felinos mesmo, me identifico mais com eles, dou mais valor ao mistério e ao charme dos filhos de Bast. Já os cães…eu adoro eles também, e não há contradição nenhuma nisso. Estranho é não gostar de bicho nenhum – sinal de falta de caráter, como diz minha mãe. Eu gosto de cães, mas sempre tem uma coisa ou outra que me irrita neles: submissão, barulho, inconveniência, falta de tato e de elegância…

[Você pode dizer que seu fofinho não é nada disso, mas se ligue, a coruja acha os próprios filhos lindos. Se você diz que seu cão não tem nenhum desses traços, ou você está equivocado/a ou está mentindo. E toda regra precisa de exceções que a reforcem, de qualquer modo.]

Falando assim, alguém pode se perguntar porque eu decidi, numa noite de sexta, escrever um texto sobre cães, ao invés de estar bêbado de Quilmes em algum lugar barulhento, como deus (ou o cão, falando nele) certamente quis. Porque eu tô escrevendo isso mesmo?

Bom, porque uma das coisas que me chamou primeiro a atenção aqui em Buenos Aires foi a quantidade de cachorros nas ruas. Muitos! Vários! De todas as raças, tamanhos e cores. No dia de sol ou na noite fria, lá está, uma galera de argentino passeando com seus caninos. A primavera está aqui, e nos fins de semana eu vejo um monte de gente nas praças passeando com seus caninos, e os caninos brincam, pululam e conversam entre eles, felizes e contentes. Curiosamente, vejo poucos cachorros *de* rua. Acho que os argentinos logo adotam os vira-latas sem lar…

Ser dog walker (aquele povo que é pago pra levar os cachorros dos outros pra passear) aqui é um emprego bastante promissor. Eu vejo uns caras levando quatro, seis, nove cachorros pra passear…e, na rua em que fica o prédio no qual eu trabalho, todo dia, às 11h, passa um cara levando 14 (!!) cachorros.

[O lado mal de tudo isso é que o povo aqui não tem o bom hábito de limpar os alfajores que seus cães confeccionam na rua. O resultado disso é que andar por qualquer calçada aqui se torna uma corrida com obstáculos.]

Pois bem, na real nem sei se, estatisticamente, os buenairenses (sei lá se o nome é esse mesmo!) possuem e gostam mais de cães do que os povos de outros lugares – e, se gostam mesmo, se há alguma razão cultural que motive isso. Mas é certo que aqui tem cachorro pra porra. Então, porque esse povo gosta tanto deles?

Vai ver eles amam os cães pelos mesmos motivos que todos aqueles que amam os cães: pelo companheirismo, pela fidelidade, pelo afeto, pela simpatia atabalhoada, pela alegria que eles trazem para casa. Você está triste porque as pessoas são estranhas e sacanas? Está tudo bem: seu cachorro está em casa pra te fazer companhia, sem ficar indagando ou abusando você (com palavras, pelo menos). Seu trabalho é um merda e seu/sua namorado/a te enche o saco? Mande ele/a ir morar com o sete-pele e passe um tempo com seu cão. Sua vida é massa, e você é feliz? Certamente seu cão tem algum papel nisso. E, se você é feliz mesmo sem ter um cão, bote fé, sua vida seria ainda mais divertida se você tivesse um.

Palavras são ferramentas toscas pra se expressar o que sente, e ainda assim gostamos, precisamos delas. Talvez por isso os seres humanos curtam tanto ter animais de estimação: poder amar e ser amado por outro ser vivo sem necessidade de palavras. E talvez esses bichos gostem das bagunças que nós somos, com nossas vidas complicadas, nossa música, nossas comidas com gostos exóticos e nossos latidos cheios de sentido. Eu admito, a amizade de um cão é mais divertida, com sua imperfeição, seu barulho, suas paranóias e seus sentidos aguçados. E eles nos oferecem um tipo de amor que ser humano nenhum pode oferecer: o amor incondicional. De certo modo, o amor que recebemos dos caninos é o que desejamos receber das pessoas – e talvez eu, os buenairenses, e você que ama cães, apreciamos tanto os caninos por reconhecermos, em um nível profundo, que nenhum amor que você tenha na vida vai ser mais fiel e genuíno que o amor do seu cão por você.

"você pode cair na sarjeta e o cachorro lamber sua boca!"

Tanto cachorro na rua tem me dado uma saudade doente de meus cães. Da companhia deles, das maluquices, até dos latidos incessantes que tanto me irritavam, e que me acordavam às 10 horas da madrugada. Chego em casa aqui, o maior silêncio…daqui a pouco estou que nem minha mãe, ligando pra casa pra perguntar dos cães, se estão comendo direito, se tem companhia…e quase se esquecendo de perguntar dos humanos da casa, heheheh

Por fim, deixo pra vocês esse texto que eu li há muito tempo – não por acaso, em uma clínica veterinária

Dedico este texto a Mel, meu cão obeso, a Pivete (que também chamam de Belinha), a Seu Penga (também conhecido como Pino Bril, o perneta abusado), e também pra Bia, o cão bebedor de cerveja, que São Francisco a tenha em um campo verdinho.

Dedico aos buenairenses, que tanto amam os caninos.

E dedico a minha irmã, que gosta tanto desses pragas que decidiu fazer desse amor uma profissão.

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Senhores jurados, o melhor amigo que um homem tem neste mundo pode voltar-se contra ele e tornar-se seu inimigo. O filho ou filha que educou com amor e cuidado podem responder com ingratidão. Aqueles que estão mais próximos e são mais amados por nós — aqueles a quem nós confiamos nossa felicidade e nosso bom nome — podem tornar-se traidores desta confiança.

O dinheiro que um homem tem, pode perder. Foge dele, talvez quando ele mais precisa. A reputação de um homem pode ser sacrificada no momento de uma ação impensada. As pessoas que se apressam a se ajoelharem a nossos pés quando o sucesso está conosco, podem ser as primeiras a jogarem a pedra da malícia quando o fracasso paira sobre nossas cabeças.

O único amigo desinteressado que um homem pode ter neste mundo egoísta — aquele que nunca é ingrato ou traiçoeiro — é seu cão. Senhores jurados, o cão permanece com seu dono na prosperidade e na pobreza, na saúde e na doença. Ele dormirá no chão frio, onde os ventos invernais sopram e a neve se lança impetuosamente, se apenas o deixarem estar ao lado de seu dono.

Ele beijará a mão que não tem alimento a oferecer, ele lamberá as feridas e as dores que aparecem nos encontros com a violência do mundo. Ele guarda o sono de seu dono miserável como se este fosse um príncipe. Quando todos os amigos o abandonarem, ele permanecerá. Quando a riqueza desaparece e a reputação se despedaça, ele é constante em seu amor, como o sol em sua jornada através do firmamento.

Se a fortuna arrasta o dono para o exílio, sem amigos e sem abrigo, o cão fiel não pede mais do que o privilégio de acompanhá-lo, a fim de protegê-lo contra o perigo, a fim de lutar contra seus inimigos.

E quando a cena final se apresenta e a morte leva o dono em seus braços e seu corpo é deixado no chão frio, não importa que todos os amigos sigam seu caminho; lá, ao lado de sua sepultura, se encontrará o nobre cão, a cabeça entre suas patas, os olhos tristes mas alertas, fiel e verdadeiro até a morte.

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Este discurso foi apresentado a um júri pelo ex-senador George G. Vest (então advogado), que representou o proprietário de um cão morto a tiros, propositalmente, pelo vizinho. O fato ocorreu há um século na cidade de Warrensburg, Missouri, nos Estados Unidos da América. O senador ganhou o caso e hoje existe uma estátua do cão juntamente com seu discurso na entrada do Tribunal de Justiça, ainda existente na cidade.

*”Perro” é cão em espanhol. O título do post faz alusão a Amores Brutos,  filme mexicano de 2000.

Out
18

Senti agora, ao sair no quintal da casa que estou, o mesmo cheiro que sentia quando criança no quintal da casa de meu avô, em Iguaí, interior da Bahia.

Out
18

Pensei em escrever um post sobre as desventuras que ocorreram no dia da viagem pra Buenos Aires, mas ia ser um saco. Tenho assuntos mais interessantes pra redigir, na moral. Mas só pra vocês saberem, segue aí a versão reduzida:

1)      Perdi o voo que ia me levar às 9h10 pra São Paulo.

2)      O albergue no qual eu dormi a primeira noite era um muquifo do cão.

No final das contas, tudo terminou bem: embarquei em um voo direto pra Buenos Aires às 18h, sem conexão em São Paulo (só escala no Rio) – e só fiquei a primeira noite no albergue, e o administrador do lugar era um tiozinho bem simpático.

Inclusive, esqueci meu travesseiro ortopédico superbacana no albergue (Hostel Dreams, heheh), e voltei lá pra pegar dois dias depois.

Vou dividir essas primeiras experiências em categorias:

CHEGADA

Cheguei 00h40 na capital portenha e meus chefes – um casal legal demais – estavam me esperando. E, esperando pra me pegar no esparro, estava também um FRIO DO CACETE. 6 graus, putaquemepariu, pensei,

“Eu sou vacilão demais, deixei os agasalhos mais brutais em casa…não queria volume na mala, achei que a primavera aqui era quentinha, ou não-tão-fria, e tomei no roskoff. Vou ter que fazer fogueira em tonel de lixo pra me aquecer, no melhor mendigo style”

Mas que nada, foi um frio atípico. Quer dizer, ainda tá frio. Pra quem conhece, tá fazendo aqui na primavera o mesmo frio que faz no inverno em São Paulo: 14-18 graus durante o dia, 8-12 graus à noite. Nada de mais, é verdade – mas eu, que detesto répteis, reconheço meu parentesco com eles: gosto do calor, preciso dele (calango nordestino, criado no quentinho satânico da frenética capital baiana). Por isso, tenho usado meu paletó queimado de cigarro o tempo todo, ando por aí parecendo um mórmon.

TRABALHO

No dia seguinte, às 9 da manhã, já tava batendo ponto no escritório. Fui apresentado ao pessoal: 5 meninas, 2 caras, todos argentinos. Troquei ideia, comecei os primeiros contatos. Fui bem recebido, uma galera bacana, clima de amizade e companheirismo no escritório, quibeleza. Todos jovens, entre 25 e 35 anos, quase todos falam inglês, o que facilita muito quando o português não serve. Só o designer da empresa (cujo sobrenome é PICCA, a título de curiosidade escrota) não fala inglês, mas ele é bacana, e parece com Robert Carlyle, então viva.

O escritório é iluminadaço, maior sol – o que me leva a ficar trabalhando de óculos escuros, brau pra caralho mesmo, mas foda-se. E tem uma varandinha, onde vou fumar, quando os fusíveis estão ameaçando queimar com alguma tradução macabra.

Comecei a aprender a usar um software de tradução, o Trados. Eu, que sempre traduzi na mão grande, usando Google e nada mais, to me mordendo um pouco, mas é tranqüilo. E em breve a empresa vai fazer um curso interno para o ensino desse e de outros softwares, aí wheeeee.

LÍNGUA

Ah, o español…eu realmente achei que a comunicação fosse ser mais difícil. Achei que ia ter que pedir pra repetir o tempo todo, ter eu próprio que repetir, ou ficar balançando a cabeça e sorrindo quando na verdade não to entendendo porra nenhuma (isso acontece pouco, mas acontece, heheh). Porém, o português padrão e o espanhol padrão são bem parecidos, então se, numa conversa, eu e meu interlocutor (tomem aí um interlocutor na cocó) mantemos os registros formais das línguas, a comunicação acontece de boa.

E uma parada interessante que acontece: o povo me entende melhor quando falo português do que quando tento falar portunhol (meu sotaque espanhol gênio, heheh).

Conversei com motoristas de taxi, velhinhas donas de banca, garçons, passageiros de ônibus – sempre em português, no queixão mesmo. Até agora, só tive problemas de diálogo com um motorista de ônibus: fui perguntar pra o cara quanto custava a passagem, e o cara ficou falando comigo no que deve ser um braulês argentino, não entendi picas. E teve um gordo babaca dono de um mercadinho: fui puxar conversa, perguntando como se falava “carteira de cigarro” em espanhol e ele, com toda a preguiça e tacanhice do mundo, claramente não fez a menor questão de tentar entender.

Em breve devo entrar em um curso de espanhol, ou tomar aulas particulares, estudar em casa e tudo o mais. O que acontece é que, pra fazer turismo, pra se virar, o português basta – mas, pra viver aqui, tem que aprender mesmo, não tem jeito. Porque nem todo mundo vai conseguir me entender, e não é todo mundo que me entende. E, em um grupo de argentinos, só vou entender quem tá conversando diretamente comigo – os diálogos dos argentinos entre eles, em um grupo, é ruído branco puro, gibberish, não entendo nada. As conversas mais descontraídas exigem castellano fluente, então lá vou tomar aulas.

ARGENTINOS

Com pouquíssimas exceções, mencionadas acima, todos os argentinos com quem tive contato foram simpaticíssimos (usando um superlativo que sua tia deve usar). Solícitos, educados, prestativos, corteses, cada um à sua maneira, todos muito gentis. Seja dando informações na rua, ensinando a usar a escrota maquininha de moedas dos ônibus, ou simplesmente conversando fiado, fui bem tratado sempre. Não tive um grama sequer de picuinha ou hostilidade por ser brasileiro, por causa da rivalidade do futebol ou por qualquer outro motivo idiota. Muito pelo contrário, se mostram interessados em saber porque eu estou aqui, o que estou achando, se podem ajudar, e fazem perguntas do Brasil, etc.

(Inclusive, quando falo que sou da Bahia, quase sempre recebo um sorriso. Aparentemente, todos conhecem a fama da terra do ENDLESS SUMMER, e sem dúvida gostariam de curtir uma cervejinha sucesso aí, e curtir o calor da terra e das pessoas. Reclamem, putas).

Aliás, me dá um pouco de vergonha imaginar o quanto os argentinos tem que aturar de aluguel quando viajam pro Brasil. Ou não, né? Eu nunca encontrei argentinos antes de vir pra cá, também nunca vi como eles são tratados aí. Minha experiência aqui com eles tem sido bem bacana até agora, mas não quer dizer que a de todos os brasileiros também seja.

Cada cabeça é um mundo, e toda generalização é perigosa. O diabo mora nos detalhes porque, como ele mesmo disse, “os detalhes são tudo o que importa.”

(Perólas de sabedoria. Porque já estou escrevendo há uma cara, aí começo a ruminar meus pensamentos circulares de sempre.)

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Podia ainda falar do rango daqui, de minhas desventuras procurando um lugar pra alugar, podia falar de mais mil coisas mas são assuntos pra outro dia. Esse post já tá gigante, tá um frio do cacete, vou fumar um careta e dormir.

1 título de uma música do skank, do disco “o samba poconé”, a trilha sonora desse post.

Set
11

escudo de buenos aires

O papo é reto, minha gente: estou indo para Buenos Aires no início de outubro.

Vou trabalhar em uma empresa de tradução de lá, a LatinLingua.

Passarei por um período de treinamento e adaptação de uns 2 ou 3 meses, e depois saberei qual será meu destino (efetivamento, demissão sumária, desistência, sei lá).

Porém, a julgar pelas avaliações que fiz durante a seleção, o mais provável é que eu fique por lá mesmo, e por um bom tempo.

Tudo começou quando Talita me passou o contato de Ignacio, amigo dela e diretor da empresa em questão, que estava selecionando tradutores de inglês-português-inglês para trabalhar no escritório de Buenos Aires. Estando eu à deriva desde o fim do mestrado, fiz o contato com Ignacio, sem maiores pretensões. Para minha surpresa, a interação foi muito bacana e, depois de ser avaliado e entrevistado por telefone por Ignacio e Vanina (um casal muito massa, por sinal), fui convocado para o posto.

[Um conselho pra vocês, crianças: mantenham contato com seus/suas ex. Nunca se sabe se um dia – por circunstâncias advindas de karma, afeto ou puro acaso – uma delas vai aparecer com alguma surpresa dessas para o lado de vocês. Pago seus 5 cents quando te encontrar, Lucy]

Em breve meus futuros chefes me enviarão minha passagem de ida para Buenos Aires. Talvez a ficha caia na real quando isso acontecer – o mais provável é que só caia quando eu aterrissar lá, em uma cidade que não conheço (já ouvi falar bem pra caralho), com uma língua que não falo (massa, é espanhol, mas não falo porra nenhuma de nada). Essa ansiedade que precede o mergulho no desconhecido me é conhecida: senti o mesmo quando fui para Dublin em 2006. Tinha 25 anos, recém-saído da graduação, garotinho juvenil querendo conhecer o Velho Mundo. Tenho 28 anos hoje, recém-saído de um mestrado louco e, bem, aprendi um truque ou dois de lá para cá, e agora parto para conhecer o Novo Mundo para além das fronteiras desse Brasil varonil. Interessante como a vida parece se mover em ciclos, não? Em momentos assim sempre lembro de meu pai me dizendo que “o acaso não existe.” Tudo acontece por um motivo, e ‘acaso’ é apenas o nome que damos aos padrões que não conseguimos reconhecer. Mas eu digresso…

Minha cabeça anda girando com tudo isso (não, não estou bêbado, seus sacanas). Tenho pensado e sentido mil coisas, e esse turbilhão vai se intensificar a cada dia que me separa da fatídica data de partida no início de outubro. Se Deus existisse, ou antes, se eu acreditasse Nele, eu faria como Cazuza e Cássia Eller e pediria um pouco de malandragem, porque o bagulho é frenético, mô pai, e tudo indica que vai ficar ainda mais.

Deixe vir o que me aguarda…

VAI RIQUEEEELME!

Set
02

fear of the dark

É contra mim que luto
Não tenho outro inimigo.
O que penso
O que sinto
O que digo
E o que faço
É que pede castigo
E desespera a lança no meu braço

Absurda aliança
De criança
E de adulto.
O que sou é um insulto
Ao que não sou
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou

Infeliz com loucura e sem loucura,
Peço à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido
Nem convencido
E agrido em mim o homem e o menino

-Miguel Torga

Ago
31

Há flores por todos os lados
Há flores em tudo o que eu vejo

Ago
31

Um dos medos perenes que tenho é o de enlouquecer. Tenho medo de sucumbir aos aspectos mais destrutivos de minha natureza, e arruinar tudo o que já conquistei pra minha vida até aqui, tudo o que espero para os dias vindouros. Sartre disse certa vez que “o inferno são os outros.” Eu digo que o inferno somos nós mesmos.

A mente em seu próprio lugar e por si mesma

Do Inferno um Céu pode fazer, um Inferno do Céu


-John Milton, ‘Paradise Lost’