Endless Summer!
Vivendo o verão sem fim

Amores Perros*

amores perros

Quem me conhece sabe que, no horóscopo binário que divide o mundo entre gatos e cachorros, eu sou cat people. Gosto mais dos felinos mesmo, me identifico mais com eles, dou mais valor ao mistério e ao charme dos filhos de Bast. Já os cães…eu adoro eles também, e não há contradição nenhuma nisso. Estranho é não gostar de bicho nenhum – sinal de falta de caráter, como diz minha mãe. Eu gosto de cães, mas sempre tem uma coisa ou outra que me irrita neles: submissão, barulho, inconveniência, falta de tato e de elegância…

[Você pode dizer que seu fofinho não é nada disso, mas se ligue, a coruja acha os próprios filhos lindos. Se você diz que seu cão não tem nenhum desses traços, ou você está equivocado/a ou está mentindo. E toda regra precisa de exceções que a reforcem, de qualquer modo.]

Falando assim, alguém pode se perguntar porque eu decidi, numa noite de sexta, escrever um texto sobre cães, ao invés de estar bêbado de Quilmes em algum lugar barulhento, como deus (ou o cão, falando nele) certamente quis. Porque eu tô escrevendo isso mesmo?

Bom, porque uma das coisas que me chamou primeiro a atenção aqui em Buenos Aires foi a quantidade de cachorros nas ruas. Muitos! Vários! De todas as raças, tamanhos e cores. No dia de sol ou na noite fria, lá está, uma galera de argentino passeando com seus caninos. A primavera está aqui, e nos fins de semana eu vejo um monte de gente nas praças passeando com seus caninos, e os caninos brincam, pululam e conversam entre eles, felizes e contentes. Curiosamente, vejo poucos cachorros *de* rua. Acho que os argentinos logo adotam os vira-latas sem lar…

Ser dog walker (aquele povo que é pago pra levar os cachorros dos outros pra passear) aqui é um emprego bastante promissor. Eu vejo uns caras levando quatro, seis, nove cachorros pra passear…e, na rua em que fica o prédio no qual eu trabalho, todo dia, às 11h, passa um cara levando 14 (!!) cachorros.

[O lado mal de tudo isso é que o povo aqui não tem o bom hábito de limpar os alfajores que seus cães confeccionam na rua. O resultado disso é que andar por qualquer calçada aqui se torna uma corrida com obstáculos.]

Pois bem, na real nem sei se, estatisticamente, os buenairenses (sei lá se o nome é esse mesmo!) possuem e gostam mais de cães do que os povos de outros lugares – e, se gostam mesmo, se há alguma razão cultural que motive isso. Mas é certo que aqui tem cachorro pra porra. Então, porque esse povo gosta tanto deles?

Vai ver eles amam os cães pelos mesmos motivos que todos aqueles que amam os cães: pelo companheirismo, pela fidelidade, pelo afeto, pela simpatia atabalhoada, pela alegria que eles trazem para casa. Você está triste porque as pessoas são estranhas e sacanas? Está tudo bem: seu cachorro está em casa pra te fazer companhia, sem ficar indagando ou abusando você (com palavras, pelo menos). Seu trabalho é um merda e seu/sua namorado/a te enche o saco? Mande ele/a ir morar com o sete-pele e passe um tempo com seu cão. Sua vida é massa, e você é feliz? Certamente seu cão tem algum papel nisso. E, se você é feliz mesmo sem ter um cão, bote fé, sua vida seria ainda mais divertida se você tivesse um.

Palavras são ferramentas toscas pra se expressar o que sente, e ainda assim gostamos, precisamos delas. Talvez por isso os seres humanos curtam tanto ter animais de estimação: poder amar e ser amado por outro ser vivo sem necessidade de palavras. E talvez esses bichos gostem das bagunças que nós somos, com nossas vidas complicadas, nossa música, nossas comidas com gostos exóticos e nossos latidos cheios de sentido. Eu admito, a amizade de um cão é mais divertida, com sua imperfeição, seu barulho, suas paranóias e seus sentidos aguçados. E eles nos oferecem um tipo de amor que ser humano nenhum pode oferecer: o amor incondicional. De certo modo, o amor que recebemos dos caninos é o que desejamos receber das pessoas – e talvez eu, os buenairenses, e você que ama cães, apreciamos tanto os caninos por reconhecermos, em um nível profundo, que nenhum amor que você tenha na vida vai ser mais fiel e genuíno que o amor do seu cão por você.

"você pode cair na sarjeta e o cachorro lamber sua boca!"

Tanto cachorro na rua tem me dado uma saudade doente de meus cães. Da companhia deles, das maluquices, até dos latidos incessantes que tanto me irritavam, e que me acordavam às 10 horas da madrugada. Chego em casa aqui, o maior silêncio…daqui a pouco estou que nem minha mãe, ligando pra casa pra perguntar dos cães, se estão comendo direito, se tem companhia…e quase se esquecendo de perguntar dos humanos da casa, heheheh

Por fim, deixo pra vocês esse texto que eu li há muito tempo – não por acaso, em uma clínica veterinária

Dedico este texto a Mel, meu cão obeso, a Pivete (que também chamam de Belinha), a Seu Penga (também conhecido como Pino Bril, o perneta abusado), e também pra Bia, o cão bebedor de cerveja, que São Francisco a tenha em um campo verdinho.

Dedico aos buenairenses, que tanto amam os caninos.

E dedico a minha irmã, que gosta tanto desses pragas que decidiu fazer desse amor uma profissão.

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Senhores jurados, o melhor amigo que um homem tem neste mundo pode voltar-se contra ele e tornar-se seu inimigo. O filho ou filha que educou com amor e cuidado podem responder com ingratidão. Aqueles que estão mais próximos e são mais amados por nós — aqueles a quem nós confiamos nossa felicidade e nosso bom nome — podem tornar-se traidores desta confiança.

O dinheiro que um homem tem, pode perder. Foge dele, talvez quando ele mais precisa. A reputação de um homem pode ser sacrificada no momento de uma ação impensada. As pessoas que se apressam a se ajoelharem a nossos pés quando o sucesso está conosco, podem ser as primeiras a jogarem a pedra da malícia quando o fracasso paira sobre nossas cabeças.

O único amigo desinteressado que um homem pode ter neste mundo egoísta — aquele que nunca é ingrato ou traiçoeiro — é seu cão. Senhores jurados, o cão permanece com seu dono na prosperidade e na pobreza, na saúde e na doença. Ele dormirá no chão frio, onde os ventos invernais sopram e a neve se lança impetuosamente, se apenas o deixarem estar ao lado de seu dono.

Ele beijará a mão que não tem alimento a oferecer, ele lamberá as feridas e as dores que aparecem nos encontros com a violência do mundo. Ele guarda o sono de seu dono miserável como se este fosse um príncipe. Quando todos os amigos o abandonarem, ele permanecerá. Quando a riqueza desaparece e a reputação se despedaça, ele é constante em seu amor, como o sol em sua jornada através do firmamento.

Se a fortuna arrasta o dono para o exílio, sem amigos e sem abrigo, o cão fiel não pede mais do que o privilégio de acompanhá-lo, a fim de protegê-lo contra o perigo, a fim de lutar contra seus inimigos.

E quando a cena final se apresenta e a morte leva o dono em seus braços e seu corpo é deixado no chão frio, não importa que todos os amigos sigam seu caminho; lá, ao lado de sua sepultura, se encontrará o nobre cão, a cabeça entre suas patas, os olhos tristes mas alertas, fiel e verdadeiro até a morte.

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Este discurso foi apresentado a um júri pelo ex-senador George G. Vest (então advogado), que representou o proprietário de um cão morto a tiros, propositalmente, pelo vizinho. O fato ocorreu há um século na cidade de Warrensburg, Missouri, nos Estados Unidos da América. O senador ganhou o caso e hoje existe uma estátua do cão juntamente com seu discurso na entrada do Tribunal de Justiça, ainda existente na cidade.

*”Perro” é cão em espanhol. O título do post faz alusão a Amores Brutos,  filme mexicano de 2000.

14 Respostas to “Amores Perros*”

  1. Eu acho que gosto mais de cães… mas moro em apto. e acho que ter um cão num espaço desses é sacanagem p’ra todo mundo!

    Dizem que em Paris todo mundo tem um cão… Não sei, nunca fui lá!

    Papo de canino sempre me lembra da Graphic Novel do Miguelanxo Prado Mundo Cão…

    =)

  2. Que texto lindo, Jack!
    Bjk.

  3. Me vieram saudades de quando tinha um… =)

  4. Irmão, que texto lindo… estou com os olhos marejados. Não sabia que vc gostava tanto dos nossos cães… e nem que sentiria tanta falta assim deles. 🙂
    Saudade monstra de vc… contando os dias para o natal.
    Bj bj bj! Lili ama muito!

  5. Jack, outro dia conheci Ceci. Cadela miseravelmente bonita, pêlos champanhe, dócil, linda e aparentemente do bem. Estava nos braços de uma dona, vizinha minha, cujo nome deve ser na linha de Gertrudes, visivelmente amargurada, de mal trato, que praguejava como se não visse uma benga há muito. Comentei.
    – Belo cão!
    – Está é minha amiga, Ceci.
    – Belo pêlo!
    – Esta me dá alegria na vida…
    – Vai passear heim?

    E enfim a pedrada.

    – Ela não me dá trabalho nenhum, ah! queria que meu filho fosse como ela…

    E continuou arrotando indecências e encantando em línguas esquecidas até no Hades, o que me fez pensar em como os cães são dóceis e excelêntes animais domésticos. Há quem falhe com filhos e com a humanidade, mas talvez poucos consigam abater a bondade de um cão.

    Sem dúvida cães são legais, mas o homem pode ser miserável ao ponto de usá-los miseravelmente.

    Por fim… eu até gosto deles.

  6. Sou suspeita para comentar. Todo mundo sabe do meu amor pelos animais. Todo mundo sabe da minha dor em não poder proteger a todos, sem exceção. Como li em algum lugar, algum dia: “Enquanto existir um animal sofrendo nesse mundo, minha alma não poderá ser completamente feliz”. Queria que todos pensassem como você, que mesmo sabendo dos inconvenientes da espécie canina, tivesse consciência das qualidades incondicionais e das vantagens de se ter um amigo cão (sem importar o sexo). Ou gato. 🙂
    Vânia Moura Santa Inez

  7. Conhecia este discurso de Goerge G. Vest! É muito bom!
    Este é um link para o monumento criado em homenagem ao OLD DRUM:

    Estive em Belo Horizonte até anteontem, e também me surpreendi com a presença de cães nas ruas, nos parques, e em um shopping (Pátio Savassi), coisa que eu nunca tinha visto em outro lugar.

    Tenho lido o eeendlesssummer, mas nunca tive coragem de comentá-lo e, enfim, acompanhando a saga e os textos, é muito estranho não imaginar você em SSA.

    Abraços.

  8. No…. Como eu queria ter um Beagle agora….! :o( Por hora tenho que contentar com minha “peixa” (minha esposa), meu x-box e a piveta que ta chegando na áera ^_^ O Beagle vai ter que ficar em “queue” ate a gente ter uma casa hehehehheheheehh

  9. entendo exatamente quando vc fala de uma casa vazia sem animais!
    sinto arrepio só de pensar em chegar em casa e não encontrar minhas filhas, que apesar dos inconvenientes (uivam quando saio de casa, rasgam o sofá, comem e espelham lixo…) são muito amadas!

  10. O desgraçado do Seu Penga me adotou como pai, me segue pela casa o dia todo me abusando, esse desgraçado. Proteçao contra bicuda é uma vantagem muito grande pra um cachorro…

    Saudades, meu audacioso!

  11. “Em 1924 Hachikō foi trazido a Tóquio pelo seu dono, Hidesaburō Ueno, um professor do departamento de agricultura da Universidade de Tóquio. Hachikō acompanhava Ueno desde a porta de casa até a não distante Estação de Shibuya, retornando para encontrá-lo ao final do dia. A rotina continuou até Maio do ano seguinte, quando numa tarde o professor não retornou em seu usual trem, como de costume. Ueno sofrera um AVC na universidade naquele dia, nunca mais retornando a estação onde sempre o esperara Hachikō.

    Hachikō foi dado à outra pessoa após a morte de seu mestre, mas ele escapava constantemente, aparecendo diversas vezes em sua antiga casa. Depois de certo tempo, Hachikō aparentemente se deu conta de que o Professor Ueno não mais morava ali. Então tornou a procurar na estação de trem onde o encontrara diversas vezes antes. Dia após dia, em meio aos apressados passageiros, Hachikō esperava pelo retorno de seu amigo.

    A figura permanente do cão à espera de seu dono atraiu a atenção de alguns transeuntes. Muitos deles, frequentadores da estação de Shibuya, já haviam visto Hachikō e Professor Ueno indo e vindo diariamente no passado. Percebendo que o cão esperava em vão a volta de seu mestre, ficaram tocados e passaram então a trazer petiscos e comida para alivar sua vigília.

    Por 10 anos contínuos Hachikō aparecia ao final da tarde, precisamente no momento de desembarque do trem na estação, na esperança de reencontrar-se com seu dono.

    Lá em Shibuya tem uma estatua de Hachiko.”

    (enviado por Juliana Hirata)

  12. acho que os buenosairenses são chamados de portenhos, mas posso estar enganada…

    e, sim, lidar com animais é mais fácil do que com gente, amá-los idem. concordo com sua mãe, tb desconfio de quem não gosta de animais, sejam eles quais forem. uma casa sem animais me parece vazia, algo sempre parece estar faltando ali…

    qdo viajo, sinto dificuldades de dormir sem o peso da vivi na minha perna. depois de tres dias, coloco uma bolsa em cima para fazer de conta que é ela. e se a uhura não mia, já fico preocupada, achando que está doente…

    felizes são os portenhos que nutrem esse amor, e nós tb, amigo!

  13. Me lembrei dessa música…

    A Machine For Loving
    (Iggy Pop)

    Two weeks after my arrival, Fox died
    Just after sunset
    I was stretched out on the bed
    when he approached
    and tried painfully to jump up
    He wagged his tail nervously.

    Since the beginning
    he hadn’t touched his bowl once
    He had lost a lot of weight
    I helped him to settle on my lap
    For a few seconds, he looked at me
    with a curious mixture of exhaustion and apology
    Then, calmed, he closed his eyes
    Two minutes later he gave out his last breath.

    I buried him beside the residence
    at the western extremity of the land
    surrounded by the protective fence
    next to his predecessors
    During the night, a rapid transport from the Central City
    dropped off an identical dog
    They knew the codes and how to work the barrier
    I didn’t have to get up to greet them
    A small white and ginger mongrel came toward me
    wagging its tail
    I gestured to him
    He jumped on the bed and stretched out beside me.

    Love is simple to define
    but it seldom happens in the series of beings
    Through these dogs we pay homage to love
    And to its possibility.

    What is a dog but a machine for loving
    You introduce him to a human being,
    giving him the mission to love
    And however ugly, perverse, deformed or stupid
    this human being might be
    The dog loves him.
    The dog loves him.


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